Pois bem, o livro de Tible é bom porque se livra dessas falácias, insere-se na alegremente na polêmica — ainda que por ser um tese de doutorado, antes de um livro, carregue um estilo às vezes demasiado acadêmico, mais pesado do que uma obra com essa temática demanda. A obra em questão está articulada em três capítulos:
o primeiro, sobre a relação de Marx e o colonialismo e a América Indígena,
o segundo, a respeito da práxis antiestatal de Marx — aproximando-o do Clastres que lhe criticou tão duramente — e, por fim,
o melhor e mais relevante capítulo:
cosmologias, no qual Tible delinea o ponto de conexão entre Marx e o pensamento ameríndio — aqui, na forma da antropologia reversa de Davi Copenawa –, o que é precisamente a relação entre a noção marxiana de fetiche da mercadoria e o de feitiço: os brancos civilizados, pois, não estão menos isentos de serem enfeitiçados, ao contrário, vivem imersos na atração fatal que nutrem por seus objetos técnicos, na medida em que lhe atribuem feições humanas – no mesmo movimento em que desumanizam a si mesmos e aos outros, sendo que só a partir daí tais objetos devêm
mercadoria.Sim, Marx, ao contrário de Engels, emergiu gradualmente do fetiche civilizatório e modernista. E é em torno disso que giro o primeiro capítulo do livro. E isso não é generosidade demasiada, uma apropriação arbitrária ou
wishful thinking do autor de Marx Selvagem para com Marx: Tible demonstra isso com obstinação ao expor o giro marxiano em relação à questão colonial; o velho Marx possuía uma posição inicial sobre o imperialismo, segundo a qual o processo de colonização era visto como uma chance de povos como os indianos entrarem na História para, depois, chutarem os colonizadores britânicos, unindo-se aos trabalhadores do mundo num processo que desembocaria na revolução; isso muda, no entanto, quando Marx assume uma posição absolutamente hostil ao colonialismo, o qual passa a ser enxergado como mero meio de retroalimentação da máquina capitalista mundial: seria um dispositivo marcado pela dialética centro (progresso) e periferia (atraso), na qual os civilizados explorariam os selvagens e bárbaros, que lhes eram contemporâneos. A partir daí, a própria luta de classes tornaria-se uma modalidade da exploração geral, a qual em escala global era dada pelo processo de parasitagem do colonialismo.Grande parte desse giro marxiano se dá em razão da leitura marxiana do antropólogo americano Lewis Henry Morgan: e a novidade que Morgan trouxe à antropologia foi de não apenas deixar de lado o discurso colonial-racista dos seus pares, mas também — e sobretudo — de afirmar que as as coletividades humanas selvagens não eram necessariamente piores. Ao contrário. Isto é, ainda há uma certa linearidade em Morgan — como há em Marx –, mas o que certamente lhe fascinou em Marx foi que os selvagens não estão postos em uma condição hierarquicamente inferior aos civilizados, consistindo em formas diferentes de coexistência — ambas sincrônicas, diga-se de passagem. Tible, aliás, é particularmente competente em demonstrar isso.
As coisas esquentam mesmo no segundo capítulo, quando Tible faz uma leitura do anti-estatalismo na obra de Marx e de Pierre Clastres, ousando estabelecer um ponto de conexão entre ambos — o que, a um primeiro olhar, seria tarefa impossível. Pois bem, a hipótese que o autor traça é conectar a sociedade sem Estado de Marx a a sociedade contra o Estado de Clastres, encontrando um comum em meio à (aparente?) dissonância. Sim, ambos, Marx e Clastres, são pensadores anti-Estado. A partir daí, ele traça o anti-estatalismo na obra dos dois para, logo mais, promover o encontro entre eles. A transição revolucionária de Marx, o que há entre o Estado burguês e o comunismo, como o esconjuramento atual do Estado em Clastres?
E Tible faz bem isso ao nos lembrar que Marx não é Lassalle, para quem a ideia de um Estado popular e proletário já aparecia com O caminho: isto é, para Marx, o Estado não é solução, mas resultado funesto da sociedade de classes, o que pode ser definido na seguinte fórmula. A sociedade de classes é causa efetiva do Estado, pois este é o local por excelência, no qual a classe dominante reprime/media as tensões causadas pela resistência da(s) classe(s) dominadas. De tal forma, ao assumir a posição da classe trabalhadora como a classe revolucionária, ele acreditava que esta ao assumir o poder seria capaz de promover a universalização da qual os burgueses jamais seriam, ou foram, capazes: esta universalização levaria a uma sociedade sem classes, ao fim do capitalismo, e consequente esvaecimento gradual do Estado. Essa talvez seja a maior diferença entre Marx e Engels, uma vez que o segundo via o Estado como causa, ao menos relativa, uma vez que ele era instrumento de repressão nas mãos da classe dominante: no engelianismo, uma vez a revolução sobreviesse e a reação a esta cessasse, o Estado perderia utilidade.
Mas é nas polêmicas com Bakunin que chegamos ao ponto que interessa. No que se refere ao combate político-intelectual com o anarquista russo, Marx defende sempre uma transição revolucionária para a sociedade de classes — e estatal — e sociedade sem classes, por não acreditar na abolição estatal “por decreto” como defendida por Bakunin; no entanto, Bakunin da sua parte responde a Marx — e não a nenhum marxista, contemporâneo ou futuro – que a transição proposta culminaria na prevalência do Estado de um modo tão ou mais autoritário — não é que Bakunin discordasse da libertação dos trabalhadores, mas sim de que a hegemonia proletária no Estado não seria capaz de gerar a liberação humana e que, ainda, entendia que o Estado gerava, ou sustentava, a sociedade de classes, logo, a sociedade sem Estado era condição prévia para a sociedade sem classes — e não o contrário.
Tible, no entanto, poderia ter feito um esforço mais conceitual do que descritivo no que diz respeito à inversão Bakuniniana e suas implicações. E poderia ter mergulhado com mais profundida na dicotomia marx-bakuniniana sobre a sociedade de classes e o Estado. Isso fica claro quando Tible prefere rebater a crítica de Bakunin ao estatismo colateral do plano de transição revolucionário de Marx, vejamos nós, pela exposição da falta de um plano de ação à proposta teórica de Bakunin, o que teria sido comprovado por seus fracassos práticos — ou quando procurar explicar a certeza da antevisão (cruel? auspiciosa?) do anarquista, sobre o que seria a experiência histórica do “socialismo real”, pelo viés de sua eventual razão em relação “a um certo marxismo já existente”, e não em relação a conceitos marxianos efetivos. A crítica ao modo como a polêmica marx-bakuniniana foi pouco enfrentada consta do próprio posfácio e, convenhamos, é justa.
Quando trata de Clastres, Tible nos lembra que para o antropólogo francês, o Estado sempre existiu, mas nas sociedades indígenas existentes, este era esconjurado por uma série de práticas que esvaziam o desenvolvimento do poder. Isto é, longe de Engels, que concebeu o Estado como evolução histórica da divisão do trabalho em As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Trabalho, para Clastres o Estado estava posto desde sempre, mas práticas como o nomadismo e a relação entre a tribo e seus guerreiros e chefes, ele restava apenas latente. O que os povos estudados por Clastres nos apontavam era a possibilidade de esconjurarmos o Estado aqui-agora. Isso seria possível, pois os povos de Estado, já foram, algum dia sem Estado, não por falta de evolução, mas pelos agenciamentos coletivos que produziam, o que estaria à nossa mão aqui-agora — e, sim, você há de ter lido algo do gênero, não por acaso, em Deleuze-Guattari.
Mas Marx, em dado momento, já antevia as sociedades sem Estado existentes hoje como um símbolo do passado (europeu), mas, sobretudo, como flecha apontando para o comunismo do porvir. Eis o que seria o casamento (possível) entre a sociedade sem Estado e a sociedade contra o Estado, atadas por um fio vermelho. Mas Tible perdeu a oportunidade para adensar algo que ele mesmo suscitou, quando lembrou o comentário de Gustavo Barbosa sobre o contratualismo em Hobbes: faltou, entretanto, definir o que seria, ontologicamente, “sociedade”, ou qual o motivo de naturalizarmos o termo como a própria essência da coletividade humana; se o próprio Marx via o contrato social como um mecanismo de expropriação, seria possível haver sociedadesem contrato social? E poderia haver sociedade — A Sociedade –, sem haver um Estado para fazer valer — à força, se necessário — tal contrato? Como os selvagens, que em toda a literatura contratualista não travaram contrato social algum, poderiam constituir uma forma de sociedade?
São questão que ambos, Marx e Clastres, não enfrentaram a seu tempo, logo, Tible não teria obrigação, em tese, de fazê-lo descritivamente em um trabalho acadêmico. Mas poderia ter adensado a crítica nessa direção. Deleuze e Guattari, eles mesmo, acertaram ao falar, no Anti-Édipo, no acerto de Marx ao tratar a história como a história dos cortes e das contingências, mas apontavam que o pensador alemão errou ao fazer leitura da história como luta de classes — quando isso pode se revelar apenas a história desde o advento da burguesia –, o que causava a ilusão de ótica de ver a burguesia, em algum momento, como realmente revolucionária — o que implica em desconhecer os próprios descaminhos da revolução passada e, consequentemente, das revoluções futuras. Por outro lado, no entanto, D&G esvaziaram isso ao, em Mil Platôs, surgirem com a ideia da existência de um Estado, ou um fantasma estatal, que percorreria a história do humana. A própria noção de socius, já no Anti-Édipo, é parte dessa contradição em termos, uma vez que o pensamento social, ao contrário do que parece, é eminentemente burguês.
Ainda que Marx e Clastres digam “sociedade” como expressão de qualquer coletividade humana, o fato de não esmiuçar o conteúdo específico do termo leva ao desconhecimento dos efeitos dessa naturalização. Não, os índios não vivem em sociedade por que não partilham um contrato, isto é, não vivem em regime negocial. O ócio, isto é, trabalhar para viver e não viver para trabalhar é o que – acima de tudo – distingue os índios de nós, pobres ricos ocidentais. Os selvagens não travam sociedades entre si, tampouco vivem sob a égide de A Sociedade — portanto, do Estado. A dificuldade de Marx e Clastres em articular contrato social, sociedade e Estado, possuem um desdobramentos importantes. O que por trás da naturalidade, no sentido de normalidade, da sociedade é algo que poderia ter sido respondido. Entender a história para além dos termos em que seu deu a luta na sociedade hegemonizada pela burguesia exige, também, uma genealogia profunda do contratualismo.
O ponto forte do livro está mesmo no terceiro — e último – capítulo. Copenawa e Marx, separados por dois séculos — e um imenso oceano — de diferença, mas que veem na relação mágica — e teológica — dos homens com seus objetos a chave para a crítica à economia política e ao capitalismo. Assertiva perfeita de Tible. O liame da relação entre homem e mercadoria é, precisamente, afetivo, dada pelos efeitos reais de um discurso imaginário. É precisamente essa liame subjetivo que permitiu a virada do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro e cognitivo. A mágica devém absoluta, justamente porque os objetos técnicos já eram laterais antes, até se tornarem quase que completamente obsoletos nos dias atuais: o que gera valor são conceitos, abstrações, marcas.
E certíssima a crítica de Tible a Viveiros de Castro, alguém cujo ponto feliz de sua antropologia está em relacionar a metafísica deleuzo-guattariana — que é sim marxista — com uma pesquisa etnográfica densa — e Viveiros concorda com o Marx da virada mais do que gostaria, e poderia admitir, como Tible felizmente demonstra. O que Tible não adensou, novamente, é que se Viveiros, via D&G, vê bem o erro marxiano (dar uma demasiada universalidade à história burguesa), por outro lado, novamente por meio dos dois, repetiram o erro de Marx ao dar, p.ex., uma existência extra-histórica na História ao Estado (sempre houve Estado), o que polui o pensamento de neblina na hora de destrinchar, e desmontar, dispositivos específicos – os quais estão a serviço da escravidão universal do regime do Capital.
Por fim, Marx Selvagem, que desemboca em Oswald no final, é uma obra divertida. Passa por muitos autores, questões e polêmicas caros ao pensamento-prática da esquerda atual. Mas importante de tudo, é a leitura correta de Marx presente no livro, ao levantar a bola para onde o pensador alemão mirava no século 19º, e não para o seu retrovisor, isto é, a própria tradição majoritária alemã. O Marx maior, felizmente, foi jogado na lata do lixo da História, primeiro com a queda do Muro de Berlim, depois com a crise do colaboracionismo de esquerda ao neoliberalismo, agora, mais do que nunca, é hora de pôr em prática um outro Marx, o que, a nosso ver, é imprescindível. Hoje, mais do que nunca, é o momento de bradar: Selvagens do Mundo, Uni-vos!