quinta-feira, setembro 18, 2014

A Escócia já ganhou

esquerda
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A Escócia já ganhou

O referendo de 18 de Setembro trouxe para o quotidiano discussões sobre história, política e economia, sobre o que foi o passado e o que se quer do futuro. Quase ninguém responde agora “ah, eu não falo dessas coisas”. E já não era sem tempo! Artigo de Mariana Vieira, em Edimburgo.
"There will be no miracles here" - jardim do Museu de Arte Moderna de Edimburgo. Foto Luís Branco
Quando cheguei à Escócia, em Março de 2006, aprendi que teria de passar a acompanhar os resultados do futebol se quisesse fazer amigos. A partir daí, chegava-se ao resto. À política, às histórias da família, às preferências religiosas e assim por diante. Puxar qualquer um destes assuntos sem aquecimento prévio podia ser infrutífero e considerado mal-educado. Se tivesse chegado à Escócia em Março de 2014, a conversa teria sido outra. Durante os últimos dois anos e meio, trocar opiniões sobre assuntos sérios (para além da bola, claro) deixou de ser coisa reservada para quando a noite já vai longa. O referendo de 18 de Setembro trouxe para o quotidiano discussões sobre história, política e economia, sobre o que foi o passado e o que se quer do futuro. Quase ninguém responde agora “ah, eu não falo dessas coisas”. E já não era sem tempo!
O jornalista Jeremy Paxman queixava-se esta semana de que “uma Svetlana qualquer com residência a norte da fronteira podia votar” mas ele, “um quarto escocês”, não podia. Pois… exactamente porque qualquer Svetlana que viva na Escócia faz parte da comunidade sobre a qual está a votar, enquanto a ligação de Paxman será de material genético, portanto absolutamente irrelevante. O referendo, portanto, dizia-me respeito.
No dia em que o referendo foi anunciado, pensei, enquanto estudante que tinha vindo de passagem por um ano e acabou por ficar quase uma década, que o assunto não me dizia respeito. Quer dizer, interessava-me, como (quase) tudo o que é humano me interessa, mas pensava que não me cabia decidir sobre questões identitárias alheias e que a minha antipatia por nacionalismos me fazia desconfiar da necessidade disto tudo. Votar NÃO nunca foi hipótese, os escoceses que fizessem o que entendessem, mas não votar de todo chegou a parecer a opção mais sensata. O preconceito era meu. Muito pouca gente encara a independência como um fim em si mesmo e, como se vê pela escolha de universo de eleitores, é tudo menos uma questão identitária*. O jornalista Jeremy Paxman queixava-se esta semana de que “uma Svetlana qualquer com residência a norte da fronteira podia votar” mas ele, “um quarto escocês”, não podia. Pois… exactamente porque qualquer Svetlana que viva na Escócia faz parte da comunidade sobre a qual está a votar, enquanto a ligação de Paxman será de material genético, portanto absolutamente irrelevante. O referendo, portanto, dizia-me respeito. Fui ficando e assim que comecei a frequentar reuniões e sessões de esclarecimento, percebi a campanha do SIM tinha uma forte componente internacionalista e anti-globalizante, aliada a uma enorme convicção de que a Escócia só terá sucesso se proteger e incentivar as suas comunidades imigrantes. Curiosamente, a noção de que não fazia parte desta terra veio do lado oposto, com a substituição de um nacionalismo escocês pouco acentuado por um nacionalismo da União, paternalista, insistente e assustador.
À falta de um discurso identitário vindo da campanha do SIM que pudessem atacar, os seus adversários agarraram-se à noção de família. Como se votar pela independência não significasse pôr fim a um império obsoleto representado pelo Reino Unido, que consideram uma das maiores vitórias do pacifismo e da cooperação, ou uma normalização da vida democrática, mas sim tornar-se um estrangeiro para os amigos e parentes, erguer uma fronteira entre iguais, precisar de um passaporte para visitar a avó. Claro está, isto exclui quem não é daqui, a quem o apelo às raízes britânicas não aquece nem arrefece — faz parte da condição de migrante saber que se deve ter o passaporte à mão para visitar os primos e nunca ninguém deixou de ter irmãos por mudar de país. O discurso deveria pesar ainda menos nesta terra, em que tanta gente tem pais irlandeses, tias americanas, filhos indianos, avós canadianas e tantas outras felizes misturadas dentro e fora da gigante Commonwealth. Da família à metáfora do divórcio ou da birra de adolescente foi um saltinho. A Escócia quer sair de casa e levar tudo com ela. A Escócia sempre foi meio tontinha, claro, mas gostamos muito dela. A Escócia devia dar uma segunda oportunidade à Inglaterra (sempre a Inglaterra, nunca Gales ou o norte da Irlanda) e “trabalhar na relação”, como se o problema se resolvesse com um livro de auto-ajuda e umas sessões de terapia. Claro que quem não nasceu aqui nem sequer interessa para a metáfora, nem como familiar distante. Teria sido fácil pegar mais consistentemente no medo da multiplicação de vistos e autorizações de trabalho, por exemplo. Mas não. O apelo é apenas emocional, a quem se identifique com a “identidade britânica”. O que, de certa forma, é compreensível, já que de outra forma teriam, por exemplo, de justificar as ameaças recorrentes de Cameron de dificultar o acesso ao Reino Unido ou ao sistema nacional de saúde britânico.
Falhando a noção de família, o Labour (mas agora também a direita, numa mudança de discurso surreal) reclama o património da solidariedade entre os trabalhadores. Quebrar a unidade do Reino Unido é abandonar a Inglaterra a um governo Conservador perpétuo e dividir os sindicatos nas suas lutas comuns**. Esquecendo por um momento que o sindicalismo ainda não recuperou de todos os ataques que lhe foram feitos desde os anos 80, o que é impressionante no discurso pretensamente de esquerda do lado do NÃO é a impressão que deixa de que a solidariedade fora de fronteiras e, já agora, através de línguas diferentes, lhes é desconhecida. Transparece uma insularidade que, infelizmente, é comum noutras áreas, como muito do discurso académico, em que para lá da Mancha só há, quando muito a Alemanha. E da solidariedade com a Irlanda independente parece que é melhor não falar, pelo sim, pelo não. A ideia de que uma nação que acaba de redescobrir o que é a intervenção directa na democracia deva disso abdicar em nome de uma solidariedade vazia, que dispense outra de organizar a sua resistência, é aberrante. Mas esta gente nunca olhou para o resto do mundo? Nunca viu campanhas internacionais? Não se lembra, como o actor Kieran Hurley repete cada vez que pode, de que ainda há bem pouco tempo os estudantes escoceses se organizaram para apoiar os estudantes ingleses que tinham de pagar propinas? Propinas essas que não seriam aplicadas na Escócia? A solidariedade estará presente sempre que houver movimento social, mas a reorganização sindical e, por muito que lhe tenham resistido, a reorganização do Labour e das suas prioridades por todo o território tem até muito a ganhar com o debate da independência e com a crescente politização de um eleitorado há muito afastado das urnas.
Com o chavão da solidariedade (que sempre fizeram questão de boicotar quando existiu de facto), de repente, toda a gente do centro-direita governamental se tornou ultrasocialista e reclama uma “transformação radical do Reino Unido” que passe por todas as suas nações. Bom, de repente é como quem diz. Desde o momento exacto em que o pânico se instaurou graças a uma única sondagem a apontar para o que até aí parecia impossível. Líderes partidários prometem empenhamento de alma e coração na devolução máxima (projecto que têm vindo a vetar há décadas e contra o qual estiveram no momento da decisão dos termos do referendo), falam no horror do socialismo num só país (quem diria!), contra o nacionalismo e o terror do tirano que quer tomar a Escócia e acabar com a imprensa livre. Por outro lado, o nível de alerta sobre o terrorismo é aumentado, admitidamente sem qualquer informação nova que o justifique, duas semanas antes do referendo, numa manobra óbvia para influenciar o eleitorado preocupado com a defesa nacional face a um atentado, se o exército se dividir.
O Museu de Arte Moderna de Edimburgo, perto de uma das saídas da cidade mas também no caminho de um dos grandes hospitais, tem dois edifícios, um de cada lado da estrada. No friso do edifício principal, escrito em néon roxo, lê-se "vai correr tudo bem". Do outro lado, por vezes aquele por onde se passa primeiro mas num jardim que não se vê da rua, outra instalação luminosa avisa: "não vai haver milagres". A mensagem é mais ou menos reconfortante conforme a ordem de leitura das frases mas qualquer das versões se aplica a esta campanha.
Nos meios sociais, a campanha do NÃO nas últimas duas semanas é o delírio! Fala-se de gangs organizados de activistas do SIM que se passeiam pelas ruas a ameaçar e intimidar quem deles discorde. Fala-se em fascismo e totalitarismo, repressão e violência. Do medo de dizer que se vai votar não! Medo de quê, já agora, quando se tem toda a banca, a imprensa e a opinião transmitida dos países aliados do mesmo lado? O discurso de Cameron e amigos soa a falso. Soa a falso que quem ameace com os cenários de desgraça sejam também aqueles que foram responsáveis pela situação actual e que, até há duas semanas, só tinham para oferta mais austeridade, xenofobia e privatizações de serviços essenciais. Ou de gente que não põe os pés na Escócia há anos e não tem noção de que o palco principal desta campanha tem sido o contacto directo com as populações, em sessões cheias de gente interessada em debater todos os aspectos da questão.

Que os líderes partidários mintam descaradamente, ou que se minta descaradamente nas redes sociais, é uma coisa, mas a imprensa também entrou a matar na jogada***. Para além dos cenários apocalípticos, sempre com a caução de um nobel qualquer, as notícias desceram ao nível do absurdo e da desonestidade caricatural. Compara-se Alex Salmond com Hitler, Mugabe, ou Estaline. Anuncia-se, em jornais nacionais como o Telegraph (que apesar de tudo não é um tablóide) que a Coreia do Norte já declarou o seu apoio à independência e manifestou interesse em negociar com os produtores de whisky. Outros dizem-nos que o Monstro do Loch Ness vai mudar-se para Lake District e afectar o turismo. Os aristocratas campeões de Polo de Elefante estão com medo do que esses gatunos lhes vão fazer às terras. A “piada” de primeiro de Abril do Guardian já se tornou rumor “confirmado”: se a independência ganha, as pessoas vão ter de passar a conduzir pela direita. Mais grave do que isso, hoje, a dois dias do referendo, uma fonte não identificada revela à imprensa que tudo o que Alex Salmond tem andado a prometer sobre o sistema nacional de saúde é mentira e que planeia uma série de cortes para o dia seguinte à votação. A manutenção do sistema nacional de saúde é só um dos elementos fundamentais da campanha do SIM. Depois de uma campanha tão parcial começa a ser difícil distinguir realidade e ficção. Se tudo correr bem, os eleitores de dia 18 saberão distinguir o desespero confrangedor de Londres pela manutenção do status quo da vontade real de transformação, mas é muito provável que as ameaças tripliquem ainda nas últimas horas antes da votação.
Voltando ao lado positivo. Uma das enormes transformações desta campanha foi para a esquerda radical. Primeiro, tem sido uma lição sobre colaboração. Por muito que se possa desconfiar do programa do SNP, as campanhas têm sido paralelas e complementares, nunca hostis entre si. O SNP continuará na sua fase mais à esquerda enquanto tiver consciência de que grande parte do eleitorado que lhe permitiu maioria absoluta votou pelas políticas de justiça social, desiludido com o Labour. A esquerda voltou a ter motivação e mão de obra que lhe faltava há muito. O SSP (em crise desde o escândalo à volta de Tommy Sheridan) e os Verdes (ainda com representação parlamentar) estiveram muitíssimo envolvidos em todo o processo e foram responsáveis por trazer de novo para a participação política grande parte das áreas mais pobres e geralmente negligenciadas e pela mobilização da classe trabalhadora. Se o SIM ganhar, será por causa deste trabalho prolongado com as populações, para o qual o NÃO só acordou há uns dias. Dizia acima que a independência não é um fim em si mesmo para a maior parte daqueles que decidiram levar a cabo esta campanha, mas uma forma de tornar a Escócia uma nação democrática, em que, qualquer que seja o governo, os eleitores sintam que está ao seu alcance influenciar a sua escolha e avaliar a sua intervenção. A reivindicação de que a Escócia possa funcionar como uma democracia moderna (sem Câmara dos Lordes, por exemplo), favorecerá todos os quadrantes políticos. Deixando de ser responsáveis pela representação do Labour em Westminster, será normal e até saudável que também a direita se reorganize e ganhe algum terreno. Por enquanto, a tendência da esmagadora maioria de votantes no SIM é para a reivindicação de uma sociedade mais justa, fora dos programas nucleares e fora da austeridade que assola a Europa. Não será surpreendente se, após o envolvimento da comunidade na escrita da constituição, se abra o espaço político para, por exemplo, reivindicar a instauração da república e pôr fim a essa outra instituição obsoleta das ilhas britânicas.
Depois de uma campanha tão parcial começa a ser difícil distinguir realidade e ficção. Se tudo correr bem, os eleitores de dia 18 saberão distinguir o desespero confrangedor de Londres pela manutenção do status quo da vontade real de transformação, mas é muito provável que as ameaças tripliquem ainda nas últimas horas antes da votação.
O que quer que a Escócia venha a ser, terá de contar com a capacidade de manter o entusiasmo actual e os níveis de participação social. Será difícil para um país isolado contrariar o neoliberalismo vigente? Com certeza, mas o mais importante é que não tem de ser um país isolado e os esforços a norte podem encorajar e ganhar aliados pelo resto da Europa. Há a consciência de que isto vai ser a campanha mais importante da vida de muita gente. Há riscos na independência da Escócia? Há, claro. Internos e externos. A enorme diferença é a determinação com que a população respondeu ao desafio e, em vez de discutir apenas a separação, se dedicou a imaginar o mundo em que quer viver. É ingénuo pensar que isso será possível? Talvez. Mas a alternativa já todos vimos qual é. E é muito fácil prever o futuro da União inquestionada.
O Museu de Arte Moderna de Edimburgo, perto de uma das saídas da cidade mas também no caminho de um dos grandes hospitais, tem dois edifícios, um de cada lado da estrada. No friso do edifício principal, escrito em néon roxo, lê-se "vai correr tudo bem". Do outro lado, por vezes aquele por onde se passa primeiro mas num jardim que não se vê da rua, outra instalação luminosa avisa: "não vai haver milagres". A mensagem é mais ou menos reconfortante conforme a ordem de leitura das frases mas qualquer das versões se aplica a esta campanha. Fiquemo-nos pela versão menos fácil — a esperança de que vá correr tudo bem, aliada à consciência de que não há milagres (muito menos conseguidos por uma cruz num papel) e de que, se queremos um mundo melhor, temos de fazer por ele, todos os dias.
Voltarei em breve a viver em Portugal. Apesar da minha formação de classicista me avisar contra a esperança, ensina-me também que ela é uma das mais bonitas características da humanidade. Espero levar na mala um pouco do otimismo comprometido das terras altas.
Oh, e no meio disto, não sei o que se passa no mundo da bola.

* Note-se também, já agora, que o alargamento do voto para maiores de 16 não é uma tentativa de influenciar a votação. Como seria de esperar, a geração que vai agora votar pela primeira vez está tão dividida quanto o resto da sociedade.
** Vale a pena ler o texto de Terry Conway para desfazer este mito.
*** George Monbiot publicou esta terça-feira um excelente texto sobre o tratamento mediático da campanha do SIM.

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