As preocupações de
Thomas Piketty ao elaborar
O Capital no Século XXI, considerado o mais importante tratado sobre a desigualdade desde
O Capital, de
Karl Marx, transcenderam em muito a demonstração didática da dinâmica do processo. Economista com qualidades de historiador, o autor agiu movido, em grande medida, pelo “temor de que, pouco a pouco, as estruturas sociais estejam mudando de maneira irremediável, sem nos darmos conta”. A transformação não é prontamente inteligível, e “há um risco real de que acordemos para descobrir uma sociedade ainda mais desigual que a do século XIX”. Em um contexto de economia mundial fraca e retornos sobre o capital mais altos que os de crescimento, há uma tendência de ampliação das diferenças de renda, alerta
Piketty, na entrevista publicada pela revista francesa
Esprit, e reproduzida por
CartaCapital, 28-08-2014
A entrevista é de Alice Béja e Marc-Oliver Padis.
Eis a entrevista.
No seu livro O Capital no Século XXI, os resultados para diferentes países em termos de distribuição de riqueza são notavelmente uniformes. Como o senhor explica a relativa falta de especificidades nacionais?
O Capital no Século XXI delineia um esquema interpretativo geral para dados que foram coletados por toda uma equipe. Mudar o enfoque da renda para os ativos, incluída a riqueza herdada, nos permitiu transformar o modelo investigativo e aprofundar o quadro cronológico de volta à Revolução Industrial, estudando a dinâmica em ação no século XIX. Quanto às semelhanças entre os países, precisam ser extraídas dos dados e estabelecidas na análise. Tentei fazê-lo sem desprezar as histórias nacionais de riqueza, como, por exemplo, o papel desempenhado pelo capital do comércio de escravos nos Estados Unidos, o modelo Rhineland na Alemanha ou a escala da dívida nacional britânica no século XIX, que inchou a riqueza privada ao criar os rentistas financeiros, além dos rentistas fundiários existentes.
A situação era diferente na França, pois a dívida nacional foi liquidada diversas vezes e a nacionalização teve um papel central. Assim, cada país tem suas especificidades e sua própria história cultural. As reações nacionais à desigualdade também dependem de como o país percebe a si mesmo em relação aos outros. Os Estados Unidos muitas vezes justificaram sua desigualdade interna por meio de comparação com a europeia. Ou a Europa era vista como uma terra de privilégios, o que levou os americanos a aplicar um imposto confiscatório às rendas mais altas no início do século XX, para evitar parecer-se com a velha Europa, que eles consideravam extremamente desigual, ou, inversamente, eles denunciavam o coletivismo e o igualitarismo europeus, como aconteceu em décadas recentes. Cada país considera seu modelo intrinsecamente mais justo. No século XX, os Estados europeus partilharam a experiência de duas guerras mundiais.
A dinâmica da desigualdade evoluiu de modo semelhante em todos eles: as disparidades cresceram rapidamente durante a
Belle Époque, com uma concentração de riqueza inédita, depois declinou gradualmente após 1914 devido às transformações sociais causadas pelo conflito, a descolonização e o desenvolvimento do Estado do Bem-Estar Social. A partir da década de 1980, voltaram a crescer. Os países sofreram graus diferentes de destruição material em 1914-1918 e em 1939-1945, mas os choques políticos e os pesos dos gastos de guerra tiveram efeitos semelhantes sobre suas economias.
Isso valeu para o Reino Unido, que sofreu menos destruição que a França ou a Alemanha, entretanto saiu da Segunda Guerra Mundial com sua riqueza privada muito reduzida. Durante os “30 anos gloriosos”, essa redução nos níveis de riqueza privada levou à ilusão de que havíamos entrado em uma nova fase de capitalismo, uma espécie de capitalismo sem capital, ou ao menos sem capitalistas. Mas o capitalismo não havia sido superado de qualquer maneira estrutural. Ao contrário, esta era essencialmente uma fase transitória de reconstrução. A riqueza foi restabelecida, embora gradualmente. É apenas hoje, no início do século XXI, que encontramos os mesmos níveis de riqueza que nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial: cerca de seis vezes a renda nacional anual, em oposição a pouco mais que o dobro da renda nacional nos anos 1950.
Como isso afetou os países?
As diferenças nacionais persistem, é claro. Na Alemanha o índice de valorização do capital foi menor que na França, porque, entre outras coisas, no modelo Rhineland a propriedade das empresas é dividida entre acionistas e empregados. Apesar disso, ainda há tendências gerais, notadamente as de que os índices de crescimento são menores que os retornos sobre o capital e, consequentemente, a tendência é de que as desigualdades aumentem em vez de diminuir. Isso aconteceu em longos períodos da história humana, com exceção do século XX.
A tese da convergência, de diminuição da desigualdade automaticamente conforme o capitalismo evolui, tem frágeis bases teóricas e empíricas. Ela se baseia amplamente em uma hipótese formulada por
Simon Kuznets nos anos 1950. Ele observou um estreitamento das diferenças de renda nos Estados Unidos entre 1910 e 1940. Os economistas quiseram acreditar nesses resultados otimistas e os transformaram em lei. Na realidade, essa redução das desigualdades se deveu em muito às guerras mundiais, mas os indivíduos puseram na cabeça que havia algum mecanismo teórico universal que produzia uma tendência para a harmonia.
Outro fator foi que na verdade houve poucos estudos históricos da desigualdade, em parte por causa da separação disciplinar entre história e economia. Eu pretendi dar uma visão equilibrada da dinâmica em jogo. Existem, é claro, algumas forças de convergência, a mais notável a difusão do conhecimento. Atualmente, os níveis per capita de produção são muito semelhantes entre os países capitalistas avançados: Europa, Estados Unidos, Japão têm renda média anual per capita de aproximadamente 30 mil euros em todos eles. É possível que esse processo de convergência continue e inclua alguns países emergentes. Mas, se examinarmos a dinâmica da riqueza, há pressões poderosas no sentido da divergência, tanto no interior dos países quanto em nível global. Em um mundo de crescimento fraco, o fato de os retornos sobre o capital serem mais altos que os índices de crescimento tende automaticamente a aumentar as desigualdades de riqueza herdadas.
O crescimento pode compensar o processo de concentração?
Sim, mas o crescimento fraco não pode compensar muito. A maior produtividade e o aumento da população tornaram possível equilibrar a equação de Marx e evitar a queda tendencial dos retornos. Mas o ponto de equilíbrio só pode ser alcançado em um nível extremamente alto de acúmulo e concentração de riqueza, incompatível com os valores democráticos. Não há nada na teoria econômica que garanta que o nível de desigualdades no ponto de equilíbrio será aceitável. Tampouco algo garante a presença de mecanismos de estabilização automáticos que poderiam criar um equilíbrio geral.
O que acontece com o capital?
Alguns afirmaram que o índice de retorno sobre o capital declinará “naturalmente” até o nível da taxa de crescimento. Historicamente, não há evidência disso. Ao longo da maior parte da história humana o índice de crescimento foi zero, mas ainda havia um retorno sobre os ativos, geralmente um retorno médio de 4%, 5% do aluguel da terra. Essa foi a base da ordem social, pois permitiu que um grupo, a aristocracia fundiária, vivesse dessa renda. O fato é que o índice de retorno sobre os ativos foi constantemente mais alto em longo prazo do que o índice de crescimento. Isso não representa qualquer problema lógico, mas levanta a questão de se a reprodução e o reforço da desigualdade que tal proporção cria é aceitável em um contexto democrático.
Como o senhor vê a Europa hoje?
Quando o presidente do
Banco Central Europeu,
Mario Draghi, é perguntado sobre o que se deve fazer para salvar a Europa, diz que precisamos combater o rentismo, quer dizer, abrir setores protegidos como os táxis e as farmácias, como se somente a concorrência pudesse expurgar a renda econômica. Mas o fato de que os retornos sobre o capital são maiores que o índice de crescimento não tem nada a ver com monopólios, e não pode ser resolvido com mais concorrência. Ao contrário, quanto mais puro e competitivo for o mercado de capitais, maior a lacuna entre o retorno sobre o capital e o índice de crescimento. O resultado final é a separação entre proprietário e administrador. Nesse sentido, o próprio objetivo da racionalidade do mercado vai contra o da meritocracia.
O objetivo das instituições de mercado não é produzir justiça social ou reforçar os valores democráticos. O sistema de preços não conhece limites nem moral. Embora indispensável, há coisas que o mercado não pode fazer, para as quais precisamos de instituições específicas. Com frequência se acredita que as forças naturais da concorrência e do crescimento por si só embaralharão incessantemente as posições individuais. Mas no século XX foram principalmente as guerras que deitaram por terra o passado e redistribuíram as cartas. A concorrência em si não garantirá a harmonia social e democrática.
O Capital no Século XXI reafirma a importância da história econômica, o que exige o envolvimento com as outras ciências sociais.
Considero-me um cientista social tanto quanto economista. Quando você estuda questões como a distribuição de riqueza, os limites são fluidos e as abordagens devem por necessidade ser combinadas. Depois de terminar meu doutorado na
École Normale Supérieure, passei o início dos anos 1990 nos Estados Unidos, no
MIT, e em outros lugares, e fiquei muito chocado com a autossatisfação dos economistas das universidades de lá. Eles estavam convencidos de que seus métodos eram muito mais científicos que os de seus colegas nas chamadas ciências “brandas”, como sociologia, história, antropologia. Mas sua “ciência” muitas vezes era altamente ideológica. Ao contrário do que às vezes se ouve dizer, os dados históricos existem, basta ter tempo para reuni-los. Não tenho nada contra a teoria, mas ela deve ser usada com parcimônia: uma pequena quantidade de teoria pode explicar muitos fatos. Mas, na maior parte do tempo, os economistas fazem o oposto. Eles enchem o ar de teorias e dão a si mesmos a ilusão de ser científicos, embora sua base factual possa ser extremamente frágil.
Em vários pontos o senhor usa a literatura para comunicar a natureza mutável da desigualdade. Nas obras de Balzac e Austen, os ativos e as rendas dos personagens são anotados de maneira sistemática. Na literatura contemporânea, essa escala se perde: há pouco registro das condições econômicas dos personagens. As desigualdades adquiriram uma espécie de invisibilidade cognitiva, de forma a torná-las mais aceitáveis socialmente?
O livro deriva em grande parte do temor de que, pouco a pouco, as estruturas sociais mudem de maneira irremediável, sem nos darmos conta. A dinâmica não é prontamente inteligível, e há um risco real de que acordemos para descobrir uma sociedade ainda mais desigual que a do século XIX, pois combinará a arbitrariedade das desigualdades herdadas com um discurso de meritocracia que torna os “perdedores” responsáveis por sua situação (sua produtividade é muito baixa, por exemplo). O potencial para representar essas desigualdades na literatura foi reduzido, entre outras coisas, pelo desaparecimento dos parâmetros monetários. No século XIX, quando não havia inflação, estes eram marcados em pedra. Todo leitor imediatamente entendia o que se pretendia pelas quantias mencionadas em Balzac e Austen. Mas o crescimento e a alta inflação do século XX eliminaram esses parâmetros. Os números envelhecem rápido, e hoje podemos até achar difícil relacionar um salário dos anos 1990 a um determinado padrão de vida ou poder aquisitivo.
O mundo caminha para ser mais desigual que no século XIX?
De maneira mais geral, a fé coletiva no progresso e na elevação dos padrões de vida significa uma recusa a imaginar um mundo moderno tão desigual quanto o dos anos 1800. É claro que ainda não chegamos lá, e não quero cair no catastrofismo. Mas, sob certas condições, poderia acontecer. Existe uma cegueira deliberada para a lógica da dinâmica contemporânea. Os departamentos nacionais de estatísticas se negam a publicar as rendas mais altas. Em geral elas não passam do 90º percentil. Oficialmente, para não “incitar o populismo” e a inveja. Com essa lógica, teria sido possível fazer um relatório em 1788 dizendo que tudo estava bem, já que a aristocracia formava apenas 1% ou 2% da população. Mas em um país como a França ou a Grã-Bretanha, 1% ainda são 500 mil ou 600 mil cidadãos.
Nos Estados Unidos são 3 milhões. Essa quantidade ocupa um grande espaço. Eles estruturam uma ordem social. O objetivo não é incitar o ciúme; as distinções sociais não representam problemas se forem úteis para todos, como deixa claro o Artigo 1º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (“As distinções sociais só podem se basear na utilidade comum”). Mas elas têm de ser reguladas quando começam a ir contra o bem comum. Representa uma real abdicação da responsabilidade quando pesquisadores e instituições públicas deixam de descrever as desigualdades existentes em termos precisos. Isso deixa o campo aberto a rankings de riqueza de revistas como Forbes ou os Relatórios de Riqueza Global feitos pelos grandes bancos, que assumem o papel de “produtores de conhecimento”. Mas a base metodológica de seus dados permanece imprecisa. Os resultados são amplamente ideológicos, um hino ao empreendedorismo e às fortunas bem merecidas.
Além disso, o simples fato de enfocar os “500 mais ricos” é uma maneira de despolitizar a questão da desigualdade. O número é tão pequeno que se torna insignificante. Parece mostrar as desigualdades extremas, mas na realidade dá uma imagem emoliente.
As desigualdades têm de ser apreendidas de maneira mais extensa. Se tomarmos as fortunas de mais de 10 milhões de euros, em vez de mais de 1 bilhão, elas são uma proporção muito significativa da riqueza total. Precisamos das ferramentas certas para representar a desigualdade.
O movimento americano do 99% foi uma maneira de fazê-lo. Enfocar o 1% mais rico torna possível comparar sociedades diferentes que de outro modo seriam incomensuráveis. Falar sobre “altos executivos” ou “rentistas” pode parecer mais acurado, mas esses termos são historicamente específicos.
Por que o senhor defende a taxação como uma solução?
O que defendo não é apenas um imposto qualquer, mas um imposto progressivo sobre o capital, mais adequado que o imposto de renda para o “capitalismo patrimonial” do século XXI, o que não quer dizer que o imposto de renda deva ser abolido. Um imposto sobre o capital privado é crucial para combater as crescentes desigualdades, mas também seria um instrumento útil para resolver crises de dívida pública, com contribuições de cada um, segundo sua riqueza. Isso seria o ideal, difícil, mas indispensável de se alcançar. No centro de cada grande revolução democrática do passado houve uma revolução fiscal, e o mesmo valerá para o futuro.
A
inflação é um imposto sobre o capital dos pobres. Ela reduz o valor dos pequenos ativos – balanços de bancos individuais, enquanto as ações e os imóveis são protegidos. Não é a solução certa, mas é a mais fácil. Outra possibilidade é impor um longo período de penitência, como fez o Reino Unido no século XIX para eliminar sua dívida. Mas isso pode demorar décadas, e no final se gasta mais em juros da dívida do que em investimento na educação. De muitas maneiras, a dívida do governo é um falso problema: representa um empréstimo feito por nós mesmos.
Em termos de riqueza privada, a Europa nunca foi tão rica. Os Estados é que estão pobres. Então o problema é de distribuição. Essa simples realidade foi esquecida. A Europa tem enormes vantagens: seu modelo social, seus padrões de vida herdados. Ela representa 25% do PIB global. Tem espaço geográfico suficiente para regular o capitalismo com eficácia. Mas não antevê seu próprio futuro.
O senhor confia que seus dados captam plenamente o acúmulo de riqueza em sociedades empresariais, como o fundo de trilhões de dólares administrado pela BlackRock?
O principal motivo pelo qual precisamos de transparência financeira, um registro global dos ativos financeiros, assim como um imposto global sobre o capital, é exatamente porque precisamos de um conhecimento mais democrático de quem possui o quê. Há uma considerável incerteza hoje sobre o nível exato de concentração de riqueza, e isso serve para minar a possibilidade de ter um debate informado e democrático sobre o ritmo e a forma adequados da taxação. Com base nos dados imperfeitos que reuni, acho que precisamos de um imposto sobre o capital acentuadamente progressivo para mantermos sob controle a dinâmica da concentração de riqueza global. Mas, em primeiro lugar, creio que precisamos de mais transparência financeira para produzir fatos comumente aceitos.
Que papel a posição enfraquecida da força de trabalho teve no aumento das desigualdades desde os anos 1980?
A redução das desigualdades de renda entre 1914 e 1975 se deveu tanto aos choques das duas guerras mundiais quanto às reações políticas que se seguiram. Mudanças políticas radicais, entre elas o aumento da taxação progressiva, a seguridade social, o trabalho organizado e assim por diante, tiveram um papel enorme. Minha tese é simplesmente que essas mudanças, incluídas, é claro, a
revolução bolchevique e a resultante ameaça no Leste, foram amplamente produtos dos choques induzidos pelas guerras e a
Grande Depressão. Antes de 1914, não havia tendência natural à redução da desigualdade. O sistema político era formalmente democrático, mas não reagiu realmente ao nível alto e crescente de concentração de riqueza.
A redução da desigualdade durante o século XX foi principalmente o produto de violentas rebeliões políticas, e não tanto da democracia eleitoral pacífica. A queda do comunismo por volta de 1990 também contribuiu claramente para a ascensão de uma fé ilimitada no capitalismo privado do laissez-faire nas décadas de 1990 e 2000.