quarta-feira, janeiro 08, 2014

Por que o passado enfraquece a paz e o desenvolvimento

carta maior
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Por-que-o-passado-enfraquece-a-paz-e-o-desenvolvimento/6/29955


Por que o passado enfraquece a paz e o desenvolvimento

Estamos frente a um período prolongado de instabilidade. Os legados das duas guerras mundiais se derreteram na herança do fim da Guerra Fria.


Roberto Savio (*)
Arquivo

San Salvador de Bahamas, janeiro de 2014 - À medida que o ano novo começa nos sentimos inclinados a adotar uma visão a longo prazo, assim veremos por que devemos ter paciência com nossas esperanças para a paz mundial. Ainda que a análise adequada deste tema exigiria um livro e não um artigo, tomo a liberdade de apresentar aqui alguns rascunhos muito crus para a reflexão.

Antes de mais nada, devemos concordar que estamos sendo vítimas de um ciclo de adaptações do pós-guerra. O ciclo começou com o fim da Primeira Guerra Mundial, continuou com o final da Segunda Guerra Mundial, e encerrou quando acabou a Guerra Fria. Mas enquanto ao acabar a Primeira Guerra Mundial nasceu a ideia da Sociedade de Nações, e o final da Segunda Guerra Mundial viu o nascimento das Nações Unidas, nada similar surgiu depois do fim da Guerra Fria.

A Primeira Guerra Mundial provocou o fim dos quatro impérios: o otomano, o austro-húngaro, o alemão e o russo.  É de amplo consenso que o ajuste depois desta guerra foi a causa de muitos dos conflitos que se seguiram. 

Por exemplo, as absurdas reparações de guerra impostas à Alemanha criaram o revanchismo que levou Hitler ao poder. O fim do Império austro-húngaro permitiu que os Balcãs se transformassem em um barril de pólvora. O final do Império Otomano e seu desmembramento pelas potências vencedoras em novos Estados artificiais está mostrando seus efeitos na atualidade.

Os protestos sociais generalizados de uma Europa empobrecida depois da Primeira Guerra Mundial marcaram o começo do nazismo e do comunismo: não reis ou pessoas, mas pela primeira vez, as ideologias. Assim, diferente das dinastias, eram as ideias no poder que uniram pessoas de todo o mundo.

Isso fez com que a Segunda Guerra Mundial fosse muito diferente em sua natureza e alcance que sua predecessora: era uma guerra entre as democracias e o nazismo. Contudo, o principal resultado foi dividir os ganhadores em dois blocos, o capitalismo e o comunismo. A ameaça do comunismo obrigou o Ocidente a adotar opções da justiça social, incluindo direitos dos trabalhadores, participação e valores sociais.

Enquanto isso, o resto do mundo se manejou em meio desta divisão, ou tratou de estabelecer seu próprio sistema – o Movimento dos Não Alinhados - e a divisão Norte-Sul se converteu em um importante novo ajuste de pós-guerra.

Na continuação, com a queda do Muro de Berlim em 1989, chegou o fim da Guerra Fria e da globalização. Esse ajuste do pós-guerra acrescenta elementos novos, adicionais às adaptações anteriores inacabadas e, dessa vez, a nível global. 
Com a globalização como marco de justificativa, um "novo capitalismo" se afiançou, no qual a harmonia social já não era vital, e a busca do máximo benefício no mercado se converteu no único valor, sem a "carga" dos custos sociais. O resultado foi o desmantelamento do sistema social, uma diminuição dos investimentos em educação e saúde, e a desaparição de sindicatos, para nomear só alguns. Em outras palavras, o fim da ideia de sociedades baseadas nos direitos de seus cidadãos.

A Suprema Corte dos EUA determinou inclusive que as corporações têm os mesmos direitos que os cidadãos. Entramos na era da "nova economia", baseada na ideia de que as pessoas são prescindíveis e que quanto menos formam parte da produção, melhor ainda. Os "novos" economistas argumentam que o desemprego chegou para ficar, e que o Estado tem pouco a ver com a economia. São os precursores de uma era sem precedentes na história, onde 99% do crescimento econômico vai para 1% da população e o salário fixo se converte em uma coisa do passado.

Um número crescente de jovens estão desempregados e aqueles que trabalham, o fazem com empregos precários. A rede de seguridade social que os avós e os pais ainda vão proporcionando, vai desaparecer gradualmente. As Nações Unidas predizem que as gerações jovens atuais se aposentarão com uma pensão mensal de 480 euros. Sem dúvida um mundo novo e diferente.

Hoje em dia, o legado que temos é uma combinação de ao menos três heranças que fazem distante a governança global. As Nações Unidas se fizeram cada vez mais marginais em virtude de uma globalização que funciona com dois motores: o comércio e as finanças. As finanças nunca fizeram parte das Nações Unidas, estão totalmente descontroladas e, desde 1994, o comércio é controlado com a criação da Organização Mundial do Comércio. Portanto, não existe um sistema que possa fazer frente à situação atual.

A primeira herança que temos é a criação de estados artificiais. Os Estados africanos e os países árabes foram criados em uma mesa de negociações entre as potências coloniais. Nenhum país árabe, exceto o Egito, pode proclamar uma história ininterrupta sobre seu território atual e seu povo. Os novos estados incorporam os grupos étnicos e religiosos, que não eram de todo homogêneos, e grupos homogêneos às vezes se desmembraram (basta olhar os curdos, que agora estão em quatro países: Turquia, Síria, Irã e Iraque). O processo de incorporação das minorias em toda a democracia é muito difícil, e requer um longo processo de emancipação nacional e sentido de interesse comum.  As regras da maioria e a minoria frequentemente exacerbam os conflitos.

Se prestarmos atenção, no segundo legado, de como as diferentes religiões devem coexistir, a dificuldade do processo de ajuste se torna mais clara.

A divisão entre sunitas e xiitas – e, mais importante, entre radicais e moderados -, é o obstáculo mais importante para a estabilidade entre os um milhão de muçulmanos no mundo. Só a modernidade elimina esse conflito, mas a modernidade vem com o desenvolvimento econômico, e tardará muito tempo antes que a modernidade chegue ao vasto mundo muçulmano.

A religião é também um elemento de conflito nos mundos budista e hinduísta.  A tecnicidade e a religião também jogam um papel importante na Ásia. Myanmar, com 40 minorias e diferentes religiões, é um bom exemplo de como é difícil o caminho para a democracia. E o mesmo acontece em tantos outros países, como a Malásia, Filipinas, Indonésia, Sri Lanka e assim sucessivamente. A democracia, em termos meramente formais, não pode resolver esses problemas se é que as minorias não se sentem, elas mesmas, uma parte real do processo de governança.

É evidente que só através da integração regional podem ser minimizados os conflitos locais, mas a integração continua sendo um objetivo longínquo. A América Latina, depois de dois séculos de independência política, só conseguiu produzir alguns acordos comerciais débeis e um insignificante Parlamento Latino-americano, integrado por representantes dos congressos nacionais e não eleitos pelos cidadãos, como na Europa.

A África nem sequer conseguiu isso. No início do processo de independência, houve um debate entre seus dois grandes: Jomo Kenyatta, do Quênia e Julius Nyerere, da Tanzânia. Kenyatta procurava a integração imediata da África, enquanto Nyerere apelou para a integração gradual, depois de uma fase de evolução nacional.

O resultado é que agora, com os parlamentos nacionais, os burocratas, os parlamentares e não apenas eles, a busca da unidade é muito débil. A Organização para a Unidade Africana não é mais que uma plataforma para reuniões de Chefes de Estado. Enquanto isso, o mundo árabe está mais dividido que nunca, e não conta com verdadeiras estruturas de inserção. A Ásia é tão vasta e diversa que nem sequer tenta algo tão completo, a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAM), uma iniciativa estadunidense para substituir a Organização do Tratado do Sudeste Asiático (SEATO, na sigla em inglês), criada pelos países do sudeste asiático para formar uma frente comum contra o poder crescente da China, mas que é, geralmente, considerada como uma organização sem dentes. Portanto, a integração regional que poderia ter reduzido os conflitos nacionais, continua sendo muito distante.

Nosso terceiro legado é hoje a globalização. Homogeneizou-se o mundo pelo caminho errado, através do consumismo, por exemplo, do estilo de vida, do entretenimento e da comida, mas cresceu a divisão entre ricos e pobres em todo o mundo. Os países ricos têm agora um número crescente de pobres e os países pobres têm um número cada vez maior de ricos, com a justiça social em decadência, tanto internamente como internacionalmente.

Veja-se só o caso do desastre da fábrica têxtil Savar, de Bangladesh, no começo do ano passado, no qual mais de 1.000 pessoas perderam a vida. Nenhum tipo de indenização foi paga ainda, enquanto a indústria da confecção, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, continua aumentando seus lucros. A ausência total de leis sociais internacionais vai de mãos dadas com a globalização. A desigualdade social foi crescendo desde a queda do Muro de Berlim. A brecha entre ricos e pobres é cada vez maior em todo o mundo e a classe média está diminuindo, sobretudo na Europa.

Portanto, estamos frente a um período prolongado de instabilidade. Os legados das duas guerras mundiais se derreteram na herança do fim da Guerra Fria. Os Estados Unidos e a Europa se encontram em declive irreversível devido à aparição de um mundo multipolar, com novos países conquistando espaço e poder. E, entretanto, apesar de que se tenha definido claramente temas globais como a mudança climática, quando estes entram em conflito com os interesses econômicos, não se caminha a nenhuma parte, apesar de que já há muito tempo foram aprovados alguns tratados internacionais relevantes.

Será necessário tempo para chegar a um acordo com nossos legados e encontrar a solução justa para o futuro. Mas esta não é uma razão para perder a paciência com a governabilidade e a paz. Deveríamos dar-nos conta que uma nova era virá e que vamos sair da atual.

Como escreveu o filósofo italiano Antônio Gramsci em seus “Cadernos do cárcere”, quando um ciclo histórico termina e o novo ainda não chega, vamos ter que lidar com os “monstros”.

Então, quando sairemos da instabilidade atual? Provavelmente só quando um protesto global contra a injustiça social trouxer um pouco de interesse comum e semelhança entre ação e visão... E isso não está tão longe!

(*) Roberto Savio, fundador e presidente emérito da agência de notícias IPS (Inter Press Service) e Publisher do Other News.

Nenhum comentário: